domingo, 29 de agosto de 2010

Chuva de domingo

Quase ninguém gosta que chova no domingo, porque se chove não dá para pescar, andar de bicicleta ou correr no gramado. Não da para fazer nada.

Mas eu me lembro bem de uma garotinha que nunca saía de casa a não ser para ir à escola, ela não tinha amigas, nunca levou ninguém para casa, nunca fez festa de aniversário, e que eu me lembre seus pais não ligavam para isso. Falavam que se ela gostava de se trancar no quarto e agir como se não existisse, ótimo. Não seriam eles que iriam impedir, afinal tinham mais com que se preocupar.

A garota quase nunca aparecia na janela; as raras vezes que isso acontecia eram quando estava chovendo. Sempre que chovia, a garotinha estava na janela com as mãos para fora, de olhos fechados. Era como se ela estivesse em paz total. Nos dias em que fazia uma chuva muito forte, muito mesmo, forte de arrancar as roupas do varal, a garotinha saia para o quintal e brincava como se estivesse sol.

Tinha dias durante a semana que chovia enquanto a garota estava na escola, e quando ela voltava já tinha parado de chover, nesses dias ela voltava muito irritada, e na rua toda se podia ouvir a garota gritando coisas em uma língua que ninguém entendia.

As crianças da rua inventavam historias dizendo que a garota era um demônio que não gostava de nada e de ninguém, diziam que quando chovia ela ficava mais poderosa e por isso saia feliz para o quintal.

Nunca gostei dessas historias, quando ouvia alguma criança fazendo graça e contando historias sobre a garota, eu interferia e falava que a garotinha simplesmente gostava da chuva e que era errado falar essas coisas dela.

Eu a defendia muito, mas a verdade é que nem de seu nome eu me lembrava, algum dia alguém tinha me dito qual era o nome dela, mas eu não me lembrava bem qual era.

Bom. Todos os dias em que chovia eu ia para a janela ver a garota brincar, eu me sentia mais jovem a vendo brincar, era como ver um anjo brincando nas nuvens de chuva, era relaxante.

Mas teve um domingo de chuva, de uma chuva muito forte, uma chuva jamais vista, tinha água até o tornozelo e estava muito frio. Eu fiquei preocupada e fui para a janela ver a garota. Quando olhei pela janela levei um susto tão grande que quase caí. A garota estava de calça e camiseta regata, deitada no chão de braços abertos, os olhos piscando rápido impedindo a chuva de entrar. Como estavam caindo raios e relâmpagos eu fiquei muito preocupada, e quando estava prestes a sair de pijama na rua para tirar a garotinha da chuva, sua mãe abriu a porta da frente e a mandou entrar, ela não mexeu nem um músculo. Eu não agüentei, peguei o guarda-chuva e fui para fora.

Quando estava no meio da rua a caminho da casa onde a garota ainda se encontrava deitada eu percebi que a garota estava cantando algo em outra língua, um musica tão bela que não tenho como descrever. Neste momento eu vi um clarão e a musica se aproximou de mim e eu a ouvi com tanta clareza que pensei estar no céu. Fiquei ouvindo a musica se afastar.

Quando tudo ficou quieto, eu acordei. Espantada, eu não sabia onde estava, mas logo reconheci que era um quarto de hospital. Uma enfermeira entrou no quarto e me viu acordada se espantou, com sua voz de espanto falou:

- Que bom que você acordou.

Eu estava confusa, então perguntei:

- O que aconteceu?
- Você foi atingida por um raio durante a chuva e desmaiou.

A enfermeira murmurou algo para si mesma, mas eu entendi e fiquei aterrorizada. Por isso perguntei:

-Como ela está?
-Quem?
-A garota. A garotinha também foi atingida não é? Você acabou de falar que ela tem poucas chances. Como ela esta?

O desespero foi tomando conta da minha voz e a enfermeira percebeu.

-A garotinha foi atingida pelo mesmo raio que a senhora, mas ela está pior, pois estava deitada no chão sem proteção alguma, e tem menos chances de...

A enfermeira parou por ai, eu abaixei os olhos me lembrando da musica da garotinha.


Três meses se passaram. Agora a chuva só me traz lembranças. A chuva se tornou algo monótono. Ninguém mais dança na chuva, ninguém mais estende a mão para pegar chuva, ninguém mais canta na chuva. Ninguém mais se chama Letícia.

* * *

(Significado de Letícia: alegria.)


Nota da autora: eu escrevi este texto em 2008 e o encontrei agora, espero que tenham gostado.

4 comentários:

  1. Curti o texto, apesar do final triste! rs

    Também gosto muito de chuva. Caminhar sob a garoa, por exemplo, me acalma...

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  2. Menina, desculpe-me mas, se êsse texto é realmente de sua autoria, você já é uma escritorinha mirim, e das boas, tá bão? Que coisa mais linda, éssa história! Parabéns!

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  3. É lindo! :)

    Ana, lendo sua história me lembrei de uma maravilhosa, que eu adoro demais... chama-se "A menina de lá", do Guimarães Rosa. Está no Primeiras Histórias. Não sei se você já leu; senão, leia, leia!
    Depois me conta!

    beijinho!

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  4. Angi, seus dedos são mágicos!

    nada mais a dizer... =x

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