quarta-feira, 18 de abril de 2012

Os irmãos, piano e violino.

Parte 1. Nascer do sol.

A luz pálida da manha invadia os cômodos da pequena casa abandonada pelas janelas quebradas e empoeiradas. A casa, inteira de madeira velha e coberta de trapos, bichos e estilhaços, ficava no meio de uma clareira em um bosque esquecido.

Dentro da casa, um ruído vindo da cozinha quebra o silencio. De dentro de um armário mofado sai uma garota de aparentemente doze anos, de cabelos compridos e negros, usava um macacão velho e estava com o rosto sujo, tinha um olhar ameaçador e zangado. Saindo devagar olha em volta com cautela, depois se vira para dentro do armário novamente.

-pode sair, não tem ninguém- ela cochicha e instantes depois uma pequena criatura enrolada em trapos começa a sair do armário também- não se preocupe irmãozinho, esta tudo calmo por aqui.

Todo o corpo dele está coberto, incluindo o rosto. Ela o senta em uma cadeira podre e começa a vasculhar a casa em busca de qualquer coisa utilizável. Encontra, por um milagre, um poncho comprido guardado cuidadosamente em uma sacola de papel. Estava limpo e livre de poeira e insetos. Ela o pega e leva até o irmão.

-veja, encontrei algo melhor que esses panos frios.

Deixa a sacola de lado e começa delicadamente a tirar as cobertas do menino. São muitas e pesadas, vários pedaços rasgados e manchados de panos velhos que pareciam ter sido amarrados as pressas. A medida que ia chegando mais ao centro podia-se começar a ver o formato do corpo do garoto, era uma formação diferente, parecia como se houvessem pedras enfaixadas por dentro da carne, varias pedras, faziam o corpo parecer... deformado. Agora os panos estavam amarrados mais gentilmente, ela tira a ultima leva com cuidado e para, encara com olhos amorosos a aberração que é a criatura a sua frente.

Ela estica a mão e toca-lhe o rosto desfigurado, sua palma é quente e macia apesar de ser muito usada em trabalhos pesados.

-Não se preocupe anjinho, não vou deixar ninguém te pegar.

Ele solta um suspiro e abre um pequeno sorriso com poucos dentes quebrados. Ela retribui com um riso.

Depois de vestido, ambos começaram a vasculhar a casa.

-irmão venha cá, achei algo de que vai gostar.

Ele para debaixo da porta de um dos cômodos, com olhos arregalados. Derruba uma lagrima.

-está um pouco empoeirado, mas acho que você consegue toca-lo. Há muito você não vê um Piano, não é?

Ele se senta próximo ao instrumento, abre o tampo e se espanta ao ver que a poeira não alcançou as teclas brancas. Cuidadosamente põe seus dedos tortos sobre o mármore e tira do piano a muito adormecido, um som suave e lírico. Ela sorrindo ao vê-lo tocar se aproxima da janela e fecha os olhos, encosta a testa contra o vidro. O piano para, ela olha para ele esfregando suas mãos avermelhadas.

-sente dor?

Ele levanta seus olhos chorosos.

-Desculpe não poder acompanha-lo com meu violino... Tive que deixa-lo para trás. Diz tristemente.

Após uma troca de olhares ela diz.

-hoje ao entardecer vamos visitar o tumulo dele. Já se passou um ano desde que papai morreu.

Ele concorda com a cabeça e cobre o piano novamente, se juntando a ela próximo a janela.

Parte 2. Por do sol.

Sob a luz alaranjada do céu os dois irmãos rastejam por entre as casas de sua antiga vila até o cemitério. Engatinhando eles encontram o tumulo abandonado do pai. Tiraram todo o mato que crescia cobrindo a lapide. Ele levanta e vai em direção a um canteiro em busca de flores. Descobrindo a pedra, ela encontra a assinatura em letras apagadas: “João e Maria” logo abaixo da escritura: “pai carinhoso”.

“João e Maria” ela pensa. Á quanto tempo não pensavam em seus nomes verdadeiros, passaram tanto tempo se escondendo que mal se lembravam deles.

De repente Ela escuta gritos e vê seu irmão correndo e tropeçando em sua direção. Ele aponta para a vila, tochas e pás balançam no alto em sua direção. Pega no braço dele e corre para fora do cemitério, escapando pelas pequenas ruas enquanto escuta de longe os homens os amaldiçoando “Monstros! Aberração”.

Passando correndo por uma das ruas eles se deparam com a antiga casa em que moravam. Olhando para as paredes sujas e as janelas quebradas mal se podia lembrar de que uma família havia morado lá...

Em um movimento rápido João se solta do braço da irmã e corre em direção à porta. Ela vê a multidão se aproximar.

-JOÃO VOLTE!

Em meio ao desespero, seus olhos se perdem pelo fogo e gritos, quando o vê correndo com uma mala preta em sua direção. Ele pula em seus braços abertos e ambos fogem para a floresta. Se enfiando em cada ramo e se escondendo sob as raízes ela começa a sentir algo, começa a ouvir algo soar em sua mente.

Parte 3. Nascer da Lua.

João a puxa em direção a uma clareira, iluminada pela noite ela se vê de volta a pequena casa em que se esconderam. Eles correm e entram pela janela despistando os berros furiosos dos aldeões. Ele a guia até a sala do piano. Para de baixo da janela onde a luz branca do céu pode chegar até eles. De baixo de seus panos ele tira a caixa preta e entrega a ela.

Ela pasma se limita a poucos olhares enquanto abre a caixa, vê algo coberto por um pano. Ele se dirige ao piano e abre o tampo novamente, começa a desenfaixar as mãos e pelo canto do olho a espia.

Com lagrimas nos olhos ela retira de baixo do lenço vermelho seu amado Violino.

João sorri e começa a tocar seu piano, e reunindo suas forças, com sua voz rouca chama por ela:

-Maria... Toque comigo.

E facilmente como jamais imaginou que faria, ela escuta a musica que se criava dentro de si e a segue com seu arco. Ele no piano acompanhava, ignorava as dores de suas mãos, pela ultima vez tocaria com ela, Pela ultima vez tocariam juntos.

A musica vazava pelas paredes e ecoava pelo bosque tocando cada arvore e cada ser vivo antes de chegar aos aldeões, que seguindo a musica se aproximaram da casa, rugindo como leões. Mas as crianças não se deixaram abalar. Continuaram tocando e como magica encaixaram os gritos ao som de seus instrumentos. Ambos de olhos fechados, não sentiam o fogo que subia pelas paredes, não sentiam calor nem medo, sentiam apenas a musica.

E a seguiram até o fim.

Até onde ela os levou.

Fim

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